Paula Laboissière – Repórter da Agência Brasil
Publicado
em 02/04/2025 - 13:57
Brasília
Desde que
pode se lembrar, a nutricionista Beatriz Lamper Martinez, de 48 anos,
sempre apresentou características distintas e que, até pouco tempo, não podiam
ser facilmente explicadas.
Na infância, a mãe se referia a ela como uma criança
excessivamente sensível e madura para a idade, que se envolvia emocionalmente
com problemas de pessoas mais velhas.
Na adolescência, ela teve poucos melhores amigos, o
que se mantém ainda hoje. Durante a vida adulta, foram muitas as dificuldades
de convivência e poucos relacionamentos duradouros.
Em
setembro do ano passado, Beatriz foi diagnosticada com transtorno do espectro
autista (TEA). À Agência Brasil,
ela disse que buscou o diagnóstico porque, desde 2013, era tratada para
transtornos como depressão e ansiedade, mas sem sucesso. “Muda medicação,
aumenta medicação, mas eu nunca ficava estável”.
Foi um relacionamento com o pai de uma criança com
TEA que a fez abrir os olhos para características próprias que coincidiam com o
quadro em questão. “Ao longo dos meses, comecei a me identificar com aquelas
informações”.
“Foram
oito meses tendo acesso a tudo isso. Comecei a ler a respeito, procurar mais
coisa. Resolvi ir atrás de um psiquiatra que entendesse do assunto.
Inicialmente, me deram um diagnóstico clínico de TEA. No fundo, eu já sabia,
mas fui fazer testes neuropsicológicos. Procurei uma clínica, já que é uma
bateria de exames, perguntas, desenhos, entrevistas. E veio a confirmação de
que sou mesmo autista nível 1 de suporte. O diagnóstico também acusou altas
habilidades, com QI [quociente de inteligência] acima da média.”
Com o diagnóstico, Beatriz pode entender que as
crises que se manifestaram durante
boa parte da vida não eram pura e simplesmente
causadas por transtornos como ansiedade ou depressão. “Na literatura, mulheres que têm diagnóstico
tardio de TEA, em sua maioria, desenvolvem ansiedade e depressão na vida
adulta”. Atualmente, as crises, segundo ela, se mantêm presentes, mas são
compreendidas de uma forma completamente diferente diante do diagnóstico.
“Hoje,
por exemplo, estou muito, muito cansada. Não consigo me levantar, estou em
crise. Antes, eu achava que isso era o início de uma depressão, uma recaída.
Hoje, sei que não estou tendo uma recaída, estou tendo uma crise. Preciso
descansar, ficar quieta, dormir e, com isso, vou melhorar. O diagnóstico, pra
mim, trouxe uma certa libertação pra poder entender porque tenho sempre tantas
crises, tantos altos e baixos.”
“Quando
recebi o diagnóstico, foi um certo alívio. Pra começar a me entender de uma
outra forma. Antes, eu pensava: ‘Que sentido tem a vida? Pra quê viver desse
jeito, sempre tendo crises, com vontade de ficar quieta, de não querer fazer as
coisas’? Com o diagnóstico, a gente pensa: ‘Eu sou só diferente e preciso
aprender a lidar com isso’. No início, foi um alívio. Mas, logo em seguida, já
vieram várias questões sociais muito difíceis de lidar”, disse, ao relatar que,
entre os membros da família, apenas a irmã sabe do diagnóstico.
“A sociedade não está preparada, como um todo.
Pessoas muito próximas de mim foram bem resistentes ao meu diagnóstico, o que
me chocou muito. Mas a gente tem que entender, a vida é assim. No trabalho, pedi pra fazer mudanças de rotina
porque eu trabalhava em um ambiente com muito estímulo sensorial. Minha chefe
direta me mudou de área, fui pra um setor administrativo mais calmo, mais
tranquilo. O trabalho em si foi adaptado. E entrei com um pedido de
reconhecimento de PCD [pessoa com deficiência] pra ter meus direitos”,
explicou.
A publicitária Cecilia Avila, de 24 anos, sempre
apresentou sensibilidade extrema a sons e texturas, principalmente de roupas.
Quando criança, reclamava com a mãe de etiquetas e tecidos que pinicavam.
Ainda na
infância, também detestava que penteassem seu cabelo. “Ficava cheio de nós e,
pra desembaraçar depois, era um sofrimento”, lembra.
Durante a
adolescência, teve dificuldade pra fazer amigos e pra compreender piadas e
ironias, mesmo em tirinhas simples usadas nas aulas de língua portuguesa.
No ano
passado, Cecilia também foi diagnosticada com TEA. “Eu não me encaixava em
algumas relações sociais. Sempre fui mascarando essas coisas. Até que, adulta,
uma colega que estudou comigo comentou que teve o diagnóstico. Conversei com
ela e, assim, começou a minha busca. Querendo ou não, o diagnóstico tardio
impacta porque a gente cresceu mascarando os nossos traços. Se não mascarava,
as pessoas falavam que era frescura, só uma sensibilidadezinha que depois
passa, birra ou drama.”
“Você cresceu de uma forma e, quando vem o
diagnóstico, você sente: ‘Nossa, finalmente consigo me entender. Sei o que tenho e não fui só uma criança chata,
fresca, dramática, que não queria vestir as coisas’. Por outro lado, a gente
fica duvidando: ‘Será que eu realmente sou autista?’ A gente cresceu ouvindo
coisas e, quando vem a explicação, a gente fica meio na dúvida. Mas, ao mesmo
tempo, é um alívio.”
Para a publicitária, um combo de fatores normalmente
leva ao diagnóstico tardio de TEA, incluindo falta de informação, dificuldade
de acesso aos sistemas de saúde, dificuldades financeiras e falta de apoio
familiar. “Muitas vezes, os filhos são
diagnosticados com TEA e os pais, quando vão pesquisar para entender os filhos,
acabam se vendo muito naquelas características. Há muitos relatos assim”,
disse.
“Acredito
que o diagnóstico, mesmo sendo tardio, é importante. Você passa a se conhecer,
entende os seus limites, entende até aonde pode ir, quanto tempo você consegue
ficar numa interação social, quanto tempo consegue suportar determinados barulhos
ou luzes. E envolve comidas também, já que o autismo traz uma seletividade
alimentar que pode variar muito de caso pra caso.”
“Cabe às
pessoas entender que não é frescura. ‘Ai, barulho alto’. Não é frescura, está
realmente incomodando. ‘Ai, não come tal coisa’. Não é frescura, é que eu
realmente não consigo comer. Nesse sentido, o diagnóstico, mesmo que tardio,
ajuda, porque a gente começa a se entender e ver que, lá na infância, não era
uma criança fresca, chata ou birrenta e que havia uma explicação pra você agir
como agia. O diagnóstico tardio pode ajudar na qualidade de vida pra que, a
partir daí, ela comece uma vida mais tranquila e dentro das limitações dela,”
Cecilia.
Especialista
Para o psicólogo Leandro Cunha, o diagnóstico de
TEA, ainda que tardio, é fundamental no sentido de permitir que o indivíduo
compreenda melhor suas características e dificuldades, facilitando o acesso a
tratamentos e apoio adequados. “Isso pode melhorar significativamente a
qualidade de vida do adulto, provendo bem-estar emocional e inclusão social –
não só para ele, mas para as pessoas ao redor dele”.
Segundo
ele, alguns fatores contribuem para o diagnóstico tardio, sobretudo em adultos.
“A criança apresenta a característica, em si, desde cedo, algo que é muito
observado nos dias de hoje. Mas, nos adultos, trata-se da própria falta de
conhecimento e de conscientização, tanto da própria pessoa como de quem está ao
redor, além de crenças culturais que minimizam ou deixam um pouco de lado esses
sinais. 'O adulto não pode ter isso ou aquilo'”, disse.
“Há
também o próprio estigma social associado ao TEA. Além disso, alguns sintomas
sutis podem ser confundidos com outras condições, como TOC, TDAH”, contou. De
acordo com o especialista, muitos diagnósticos tardios de TEA estão associados
ao nível 1 de suporte, popularmente conhecido como autismo leve. “Indivíduos
nesse nível podem apresentar dificuldades bem sutis na interação social e na
comunicação, levando ao não reconhecimento dos sinais, inclusive durante a
infância”.A partir do diagnóstico,
ainda que tardio, o caminho a ser seguido, segundo Cunha, é simples: buscar
informações detalhadas e sobre como o TEA afeta a vida adulta, além de apoio
profissional por meio de terapeutas ocupacionais, aconselhamento psicológico e
mesmo grupos de apoio e comunidades que compartilham da mesma experiência.
“A
ausência de diagnóstico e a falta de suporte adequado podem levar a
dificuldades na vida adulta, incluindo dificuldades acadêmicas; problemas no
ambiente de trabalho, afetando o desempenho profissional; dificuldades nas
relações interpessoais e sociais; maior incidência de transtornos de humor e
ansiedade. Por quê? Porque a pessoa não sabe nem o que tem, não tem o
diagnóstico. Está tudo sendo confundido, gerando dificuldades na vida adulta”,
concluiu.
Edição:
Aécio Amado
Fonte: Agência Brasil